quarta-feira, 25 de abril de 2012

VQ // nº 39 / Cultura

Dilemas da cultura popular em Valença

Nosso maior muro é o monopólio que meia dúzia de instituições tenta estabelecer sobre a cultura em Valença

Recolhido que estou em meu atual transe medidativo desbundado-niilista, no alto de um “Everest mental”, prometi a mim mesmo que tão cedo não me ocuparia com a produção de textos de intervenções políticas, posto que estas, quando em assuntos alheios à seara particular de cada um, segundo conceituou o mestre jedi Sanger Nogueira, são tarefas para intelectuais. E sou apenas um bebedor de whisky. Mas eis que a garotada do VQ – agora já não tão garotos assim –, voltando à escrita impressa, reclamou-me um artigo sobre cultura popular valenciana. Esforço-me para vencer a preguiça, um dos meus seis pecados capitais (só a gula me escapa), e, entre baforadas de cachimbo, tento buscar inspiração para a empreitada sob os auspícios dos velhos Shiva e Omulu.
 
Os motes que tomo como ponto de partida são dois: a polêmica gerada pela distribuição da verba oficial para as escolas de samba de Valença, no carnaval deste ano, e um recente pronunciamento do porta-voz da comunidade quilombola de São José da Serra, Toninho Canecão, na Câmara Municipal, cobrando do poder público maior apoio à cultura popular em nossa cidade.
 
Ambos os episódios levantam, dentre outras, três questões cruciais para compreender os caminhos que perpassam o tema deste artigo: 1) onde está a cultura popular em Valença?; 2) qual o grau de organização dos atores culturais junto à sociedade civil para intervirem no Estado/sociedade política (leia-se prefeitura e Câmara); 3) a quais interesses serve a cultura aqui produzida para justificar a demanda por verba pública, em um município sabidamente carente de investimentos em serviços sociais básicos (educação, saúde, habitação, etc.)?
 
A primeira questão é, para um estudioso da cultura popular, a mais complexa. Para começo de conversa, teríamos que definir o que estamos chamando de "cultura popular" em Valença. Isto exigiria percorrer todo o emaranhado teórico que antropólogos, sociólogos, comunicólogos e outros "ólogos" têm produzido sobre o assunto. Há os tradicionalistas que insistem em estabelecer barreiras intransponíveis entre cultura erudita, popular e de massa. Há os dialogistas que lançam mão de ideias como circularidade e hibridismo cultural. Há os relativistas que afirmam que não há fronteiras entre popular, erudito e massificado. Só há apropriações feitas aleatoriamente por cada ator cultural. Podemos optar por uma ou outra abordagem, mas estejamos certos que nenhuma delas fornecerá uma resposta cabal sobre o que é "cultura popular" nestes rincões coroados.
Ícones da memória
 
Vamos a alguns casos. O forró e o pagode, que lotam os clubes populares sextas e sábados, seriam manifestações da cultura popular em Valença? Sim, diriam alguns, arrancando engulhos daqueles que vêem aqueles gêneros exemplos de pastiche (imitação vulgar) de outros “tradicionais” como baião e partido alto. E o que dizer do funk, que movimenta centenas de jovens sobretudo dos bairros periféricos do município, ou do rock'n'roll, que anima dezenas de adolescentes a tornarem-se guitarristas precoces, para orgulho dos "teachers" Marcus Prado, Pinheiro, Rafael, Fred e outros. Isto dá direito a “funkeiros” e rockers "classificarem" sua música como patrimônio da cultura popular valenciana? E onde foi parar aquele velho (e mofado), mas ainda usado, argumento de que rock, funk e outros “enlatados” são subprodutos da indústria cultural norte-americana que visam uniformizar os padrões estético-musicais dos povos pós-coloniais submetidos ao imperialismo?
 
"Nada disso!!!", hão de bradar os escudeiros da tradição. "A verdadeira cultura popular valenciana reside na memória que se tem de ícones como Rosinha de Valença e Clementina de Jesus". Sim, são ícones, como os são os Beatles para Liverpool, Mozart para Salzburgo ou Roberto Carlos para Cachoeiro do Itapemirim. O problema dos ícones é que eles perigam se tornar tão grandes que acabam por esconder todo o resto. Alguém aí se lembra de outra banda de rock de Liverpool?!. Da mesma forma, podemos conjecturar que, neste exato momento em que o leitor perde seu tempo comigo, há poetas, músicos, artistas plásticos inventando arte em diferentes cantos de Valença quase sempre anonimamente. Quem são? Onde estão? Têm pouca visibilidade social, organicidade e capital simbólico-político e, por isto, nenhum poder para fazer aquilo que Toninho Canecão fez na Tribuna da Câmara.
 
E mais. Ícones não são apenas pessoas, artistas de carne e osso, como Rosinha ou Clementina, mas também representações da cultura material ou imaterial. É o que se pode dizer, à guisa de exemplo, das fazendas do período cafeeiro, da Catedral de Nossa Senhora da Glória, da seresta de Conservatória, do já citado jongo do Quilombo São José, do outrora “melhor carnaval do sul do estado” ou, mais recentemente, do encontro anual de Folias de Reis. Graças à capacidade de negociação política que seus intelectuais orgânicos demonstraram ter, tornaram-se atrações culturais icônicas, convenientes a uma determinada exploração comercial, turística e eleitoreira a que se presta a cultura popular nos dias de hoje.
 
Monopólio da cultura
Mas - cuidado! - nem tudo convém. Alguém, além do Libório Costa de Souza, tem conhecimento de que Valença é, proporcionalmente, o município com maior concentração de terreiros de umbanda em todo o sudeste do Brasil? Por que ninguém, afora meus companheiros Gilson Gabriel e Ana Cláudia Rocha, propõe-se a estudar a cultura operária gestada nos anos áureos da indústria têxtil valenciana? Por que será? Vale a pena passar os olhos em "A conveniência da cultura", de George Yúdice, para perceber como a cultura popular nada tem de inocente, mas serve, muitas vezes, aos propósitos de agentes sociais, institucionalizados ou não, que inventam tradições e impõem "identidades legitimadoras", "no intuito de expandir e racionalizar sua dominação" em relação a outros agentes sociais (Castells). Ou seja, quero dizer que, assim como na política e na economia, há na cultura uma evidente desigualdade na distribuição de espaço e poder. Alguns “podem” mais que a grande maioria.
 
Arrisco a dizer - e isto é só um palpite - que, neste campo, nosso maior muro é o monopólio que meia dúzia de instituições a muito tenta estabelecer sobre a cultura em Valença. Fechadas em si mesmas, manipuladas por uma aristocracia de "notáveis" valencianos, parte com verniz progressista, parte abertamente conservadora, mas inteiramente partícipe de um mesmo habitus social, que segrega a "plebe" dos espaços de maior visibilidade para a cultura popular e impede, ou dificulta, que outros espaços apareçam. Até porque, em geral, os próprios órgãos públicos municipais responsáveis pela gestão cultural também estão nas mãos destes "notáveis".
 
Max Weber diria que, em Valença, ainda não passamos pelo processo de autonomização das esferas culturais, ou seja, estamos longe da secularização das visões de mundo, da afirmação positiva do conhecimento científico, do surgimento de uma moral racional e universalista, desvinculada de preceitos religiosos, e da autossuficiência econômica da arte.
 
Este me parece um problema de longa duração remetido ao processo de modernização seletiva (Jessé Souza), altamente excludente, que permeou a história de Valença em pelo menos dois momentos: o primeiro, no século XIX, quando, dada à proximidade com a corte, aqui se constituiu uma poderosa classe de proprietários rurais escravistas de mentalidade oligárquica. O outro, na segunda metade do século XX, quando em meio ao crescimento industrial e urbano, forjou-se uma nova identidade para o município mediante a hibridização (Canclini) das velhas - e falidas - oligarquias com a nova classe de industriais e comerciantes, muitos de origem imigrante (italiana ou árabe), que deu origem à atual aristocracia de "notáveis". Os dois momentos foram marcados por alta seletividade e produziram uma massa de subcidadãos, também no que tange ao exercício dos seus "direitos culturais".
 
Derrubar este muro é tarefa precípua, mas que sinto ainda distante, dado à desmobilização em que os atores culturais não vinculados àquelas tais instituições monopolizadoras se encontram. Não há um projeto cultural contra-hegemônico - ou uma contracultura, se assim preferirem - em Valença. Há, isto sim, uma multiplicidade de culturas, ou, no âmbito da juventude, de "culturas eXtremas" (Canevacci) - com “xis” maiúsculo mesmo - incapazes ou não desejosas de se articularem. Desafio lançado, volto a subir o Everest...

Alexandre é professor de história


 

2 comentários:

Anônimo disse...

Grande Alexandre!!!

Cícero Tauil disse...

Complexo demais para mim, um rélis mortal... Notei que o amigo deixou em branco os vários alambiques espalhados pela cidade, que vez ou outra acertam na mão e produzem excelentes cachaças. Tão boas ou até melhores que alguns rótulos vindos da escócia. Estou em falta com os amigos. Quando teremos a chance de degustarmos uma boa pimenta da força policial novamente?
Grande abraço!