sábado, 17 de novembro de 2012

VQ // 46 // Resenha

O novo carioca

Reunindo 19 artigos escritos nos últimos 10 anos por três intelectuais nascidos e criados na periferia do Rio de Janeiro, os textos refletem sobre um novo modo de ser e estar na cidade


Prefácio de  Francisco Bosco
 

Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa e
Marcus Vinícius Faustini

Mórula Editorial,
220 páginas, 2012
É provável que no futuro os historiadores olhem para este nosso presente da cidade do Rio de Janeiro e o vejam como um daqueles momentos – raros, em uma época que chegou a postular “o fim da história” – em que os dados se encontram no ar, girando, alguns instantes antes de tombarem decretando seus números finais. Que números serão esses ou, descodificando a metáfora, que cidade resultará desse momento de aparente abertura? Isso ainda não podemos dizer.
 

Mas pode-se dizer algumas coisas. Dentre elas: a consolidação da economia brasileira, seguida de um governo de orientação de esquerda, que distribuiu melhor a renda e impulsionou o crescimento por meio da criação de um novo mercado interno, resultante do aumento do poder aquisitivo da população de baixa renda. Isso, por si só, não é pouca coisa – e desmente as tentativas de abolir as diferenças entre direita e esquerda, a partir de uma perspectiva estrita e redutoramente econômica, como se o fim do projeto socialista de tomada dos meios de produção pelo Estado significasse uma indistinção ideológica.
 

No Rio de Janeiro, somam-se a essas características um fluxo de investimento financeiro enorme, devido à proximidade de megaeventos esportivos internacionais, e um acontecimento social de profundo impacto, que foi a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em mais de duas dezenas de territórios antes controlados pelo tráfico de drogas. São esses alguns dos motivos mais importantes que nos levam a crer que existam dados girando no ar. Mas há outros, que induzem a pensar que os dados, ao final de algumas piruetas esperançosas, cairão exatamente com os mesmos números voltados para cima. Afinal, o Rio de Janeiro (o Brasil como um todo) tem um senso republicano ainda precário, que se manifesta tanto nas condutas do Estado como nas de sua população: o espaço público é cotidianamente desrespeitado em suas regras e os governantes continuam governando muito mais em nome de interesses particulares de pequenos grupos do que do interesse geral da população. Mesmo o acontecimento altamente benéfico das UPPs corre o risco de aprofundar a desigualdade na cidade por meio do processo que vem sendo chamado de gentrificação e cuja consequência é a expulsão dos moradores das comunidades, incapazes de arcar com a súbita valorização de seus imóveis e do custo que acarretam.
 

Pois bem, O novo carioca foi pensado precisamente nesse instante de dados no ar – não apenas como um ‘retrato-em-movimento’ de câmera sutil, capaz de perceber os sentidos de um contemporâneo mutante em tempo real, mas também como uma tentativa de mudar a direção dos dados, em favor de suas propostas. “O novo carioca”, aqui apresentado, é assim, em parte uma constatação, em parte um desejo. E um desejo político, para os autores deste livro, não se separa de um ato político, isto é, do engajamento na tentativa de tornar a realidade mais parecida com esse desejo.
 

Se o novo carioca se define sobretudo por sua mobilidade física e simbólica, por sua capacidade de circular entre diversos territórios da cidade em condições de igualdade, a maior prova de que ele se refere, ao menos em parte, a algo já existente são os próprios autores. Egressos “dos grupos sociais populares, das periferias”, Jailson de Souza e Silva, Jorge Luiz Barbosa e Marcus Vinícius Faustini intervêm na “peleja da invenção do imaginário”, na disputa pelas representações da cidade, com um gesto de força inequívoca: eles não apenas desconstroem as representações tradicionais das favelas (chegando mesmo a historiá-las e situá-las no foco mais amplo da representação comum a diversas cidades do Ocidente contemporâneo) e propõem outras maneiras de vê-las, mas interpretam, eles mesmos, os representantes tradicionais desta representação, deixando nu o seu lugar discursivo.
 

É isso o que faz a simples e magistral carta aberta a Zuenir Ventura, contestando, ou ao menos relativizando, a noção de “cidade partida”. O autor do texto lembra que a cidade só é partida da perspectiva das classes média e alta, pois os moradores das periferias “sempre tiveram que circular na cidade, em busca de trabalho, de lazer, de atividades culturais. (...) a cidade é atravessada por um conjunto de práticas de circulação que faz com que ela não seja ‘partida’ para os pobres, pelo menos não na dimensão da inserção no território”. Parte da força dessa visão vem do fato de que ela revela a naturalização da representação dominante, que nem é capaz de se perceber como relativa. E tudo isso é escrito num tom professoral, no melhor sentido da palavra, reconhecendo no interlocutor não um adversário, mas um parceiro na luta pelo esvaziamento das fronteiras físicas e simbólicas. Prova irrefutável da existência de novos cariocas, egressos da periferia, que ocupam o lugar de mestres, não de “alunos e aprendizes”, como insiste outro texto deste livro.
 

Não quero tirar o prazer do leitor de descobrir por si mesmo, e nas formulações mais precisas de seus autores, as ideias aqui contidas. Quero apenas destacar, como manifestação de gratidão pelo aprendizado que elas me trouxeram, as noções decisivas de “discurso da ausência”, “morada” e “caos como imago urbis”. Na minha leitura, essas noções formam uma espécie de espinha dorsal do pensamento deste livro.
 

Sempre me indignei com o fato de que enquanto há, nos “países ricos” (a essa altura a expressão já soa estranha), “brasilianistas”, “africanistas” etc., os “países pobres” (idem) não produzem “americanistas”, “europeístas” e por aí vai. Essa é uma das manifestações da centralidade geopolítica. Centro é antes de tudo aquele que representa o outro. Aquele que julga deter o poder – senão a exclusividade – de representar o outro (a própria palavra “outro” possui um resíduo etnocêntrico ou sociocêntrico). Assim como é raro que pensadores das periferias do mundo tenham a ousadia de pensar o centro do mundo, é raro – ou era – que pensadores das periferias da cidade tenham a ousadia de pensar o centro da cidade. Mas esses aqui têm. E esse pensamento tem como objetivo “descentralizar o centro”, multiplicar as perspectivas, abrir os caminhos. O presente livro é um sopro na inteligência do leitor – e nos dados que giram no ar.

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