terça-feira, 22 de janeiro de 2013

VQ // 48 // Mídia

Virtudes e dilemas das políticas de comunicação na Argentina da Ley de Medios



POR Santiago Marino
TRADUÇÃO Marianna Araujo


Nossos hermanos argentinos vêm desde 2009 trilhando um importante caminho no rumo da consolidação de políticas de comunicação democráticas. Este é o ano da aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, a conhecida Ley de Medios. A lei representa um enorme avanço pois regula a concentração de propriedade e garante parte significativa do espectro para emissores sem fins lucrativos. Assim como no Brasil, a Argentina tinha seus serviços de comunicação regulados por uma lei da época da ditadura e as mudanças propostas pela nova legislação representam grande disputa entre a iniciativa privada e aqueles que militam por uma outra comunicação. 

No entanto, a aprovação da lei não significou a imediata transformação do cenário de concentração e oligopólio. De 2009 para cá o que se viu foi um grande embate público entre o governo de Cristina Kirchner e o grupo Clarín, maior conglomerado de comunicação do país. A história parecia caminhar para um desfecho em 7 de dezembro de 2012, dia em que a Suprema Corte determinou como limite para que o Clarín começasse a se adequar à lei.

O que aconteceu depois do esperado 7D? Quais os desafios que a sociedade argentina ainda precisa enfrentar para efetivar uma política pública de comunicação democrática? Que transformações esse processo pode gerar na sociedade? Para explicar o que está acontecendo e responder a algumas dessas perguntas, o VQ convidou o professor argentino Santiago Marino. Santiago é um pesquisador que acompanhou todo o processo desde e o começo e sua avaliação é útil não apenas para que possamos compreendê-lo, mas também para refletirmos sobre a realidade brasileira. A regulação da propriedade e outras medidas voltadas para a democratização da comunicação são urgentes para que possamos avançar na redução das desigualdades no Brasil.
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O sistema de radiodifusão argentino se caracterizou, historicamente, por sua estrutura privada e comercial, com intervenções estatais que tenderam, na maioria das vezes, a beneficiar esta lógica. Desde o retorno à democracia, a lei de radiodifusão foi modificada para permitir a criação de conglomerados, o ingresso de capital estrangeiro e reforçar o sistema baseado na busca do lucro. Este processo resultou no crescimento constante da concentração de propriedade dos meios de comunicação, que foi reforçada pelos governos que se sucederam. 

No início da crise de 2001, que implicou no fim do governo da Alianza, a gestão de Eduardo Duhalde manteve a estrutura de radiodifusão que derivava em benefícios para a iniciativa privada. Ainda assim, os maiores efeitos de sua intervenção no marco regulatório só se materializaram durante o mandato seguinte, de Néstor Kirchner, quando aquela lógica mudou, ao menos no tocante à regulação.

Por diversas razões (as quais ainda são amplamente discutidas), desde 2008 o governo de Cristina Fernández de Kirchner e os grandes grupos de comunicação (principalmente o Grupo Clarín) vêm se enfrentando abertamente. Esta situação culminou a partir da aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA) 26522/09, que produziu uma mudança na lógica da discussão e sanção de outorgas, estabeleceu limites à concentração de propriedade dos meios e propôs novas condições para a produção de conteúdos audiovisuais.  

Um dos elementos mais importantes da nova lei é o fato de que através dela reconhecem-se três tipos diferentes de atores sociais. Um deles é o não-comercial, caracterizado de maneira ampla e inclusiva, sem cair na armadilha de listar quem poderia estar incluído na categoria, correndo o risco de deixar de fora algum ator que deveria ser contemplado. 

A reserva de 33% de todas as bandas e frequências para setores sem fins lucrativos é o avanço mais relevante na nova legislação, juntamente com os argumentos que sustentam esta decisão: a possibilidade de autonomia diante dos poderes econômicos e políticos. Além disso, a lei abre a possibilidade de outorgar licenças de modo direto a emissores de baixa potência em zonas de conflito, o que pode acelerar o processo de liberação de emissores comunitários.

Por outro lado, a inclusão de novos limites para a concentração de propriedade e o avanço na estrutura dos organismos de aplicação e controle (AFSCA - Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, Conselho Federal e Comissão Bicameral), ainda que falte avançar na gestão deles, são aspectos a serem destacados. 

Idas e vindas da lei
Desde sua sanção a LSCA nunca foi aplicada plenamente. Desde 2009 até 2011 as reações dos grandes conglomerados de comunicação para frear a lei foram bem sucedidas, ainda que tenham contado com a permeabilidade de alguns setores judiciais. Outros fatores que colaboraram foram a falta de decisão integral do governo e a disposição da maioria dos partidos de oposição em adotarem a agenda dos grupos de mídia, deslegitimando a LSCA com suas intervenções. De 2011 em diante alguns fatores se alteraram: o governo reduziu a aplicação da lei ao “caso Clarín”, medidas cautelares foram adiando as decisões e a oposição mudou sua estratégia, mas foi incapaz de intervir efetivamente no processo, recusando-se a constituir a Bicameral e a nomear seus diretores para a AFSCA.

Após este périplo e em meio a uma grande disputa discursiva (com a campanha dobre o 7D, a favor e contra, e com muita desinformação por parte da iniciativa privada), parecia que caminhávamos para uma definição, o que se mostrou um equívoco. As decisões vão se sobrepondo como jogadas de uma partida de xadrez, com múltiplas intervenções: do governo, do grupo Clarín e de distintas instâncias judiciais - civil, comercial e a Corte Suprema de Justiça. 

Em maio de 2012 a sentença da Corte resolvia que no dia 7 de dezembro terminava o prazo de 36 meses que o grupo Clarín tinha para apresentar um plano de adequação à lei (para os demais grupos de mídia este prazo terminou em 22 de dezembro de 2011). Desde então teve início uma disputa discursiva e judicial que se intensificou até o fim do ano. As estratégias eram claras: o governo apostou suas fichas na data simbólica, o 7D. O grupo Clarín, por sua vez, buscou adiar na justiça a aplicação da nova legislação até que haja alguma mudança no cenário político (o que não ocorreu até agora). Por fim, há as estratégias das instâncias judiciais que não são únicas e vão variando com o tempo e espaço. 

Na quinta, 6 de dezembro de 2012, a justiça (vara Civil e Comercial) estendeu a medida cautelar em favor do grupo Clarín até que exista uma resolução definitiva para a questão. Algumas semanas depois, outra instância decidiu a favor da constitucionalidade dos artigos 41 e 161 da LSCA, denunciados pelo Clarín. O grupo apelou na vara Civil e Comercial que impôs nova medida cautelar. O caso chegou de novo à Corte Suprema. A instância máxima da justiça argentina sentenciou no dia 27 de dezembro que é a Câmara que deve indicar a resolução da questão, “dentro da maior brevidade possível” (sem estabelecer uma data para isso). Esta é a parte da sentença que beneficia o Clarín. Por outro lado, a Corte revogou a sentença anterior da vara Civil e Comercial, declarando extinta a medida cautelar. A decisão implica que quando a Câmara resolva sobre o conflito, não poderá haver mais cautelares para nenhum dos dois lados.  

Desde então, Clarín e todos os grupos que concentram propriedade acima do máximo estabelecido deveriam se adequar, ou seja, apresentar um plano de como pretendem se desfazer de suas  propriedades – e não uma lista de laranjas que assumirão o controle operativo das empresas. A sentença no último dia útil de dezembro inclui a decisão de dois juízes (Zaffaroni e Argibay), ainda que por razões diferentes. 

Finalmente, houve um elemento favorável ao governo, em relação aos prazos: ficou definido que no 7D terminava o prazo do Clarín e toda a lei deveria ser aplicada ao grupo. A sentença da Corte Suprema, na verdade, foi relevante também porque deu uma resposta ao governo que desejava saltar instâncias, devido a uma suposta gravidade institucional da questão e resolvê-la na Corte. Como o desejo do governo não foi atendido pelo tribunal, a disputa se arrastará por mais um tempo. Nos primeiros dias de janeiro o governo solicitou que a justiça siga trabalhando mesmo durante o período de férias - como no Brasil, a justiça argentina tem férias coletivas no fim do ano. Se isto não acontecer, a Câmara poderá estender sua decisão a até pelo menos meados de 2013, que é ano eleitoral na Argentina, ou seja, um ano politicamente tenso. Como se pode notar (se é que o leitor não se perdeu no labirinto de sentenças, juízes e datas), em relação à LSCA, neste país, falamos mais de questões judiciais do que de políticas de comunicação. E isso é um problema.  

A aplicação desigual da lei gerou uma série de questões pendentes que se juntam aos aspectos que ela já não resolvia. Estão entre os aspectos mais importantes a forma de garantir a reserva do espectro, de outorgar licenças a operadores sem fins lucrativos onde o espectro está saturado por emissores comerciais, desenhar o plano técnico de frequência para conhecer o mapa do espectro, dar conta dos resultados do censo 2010 para saber quantos emissores existem e quantas frequências estão disponíveis. Do outro lado, está a demora na concessão de novas licenças a cooperativas em várias cidades que poderiam oferecer de modo imediato o serviço de televisão a cabo com boa qualidade e preços mais competitivos que operadores comerciais, sobretudo em localidades onde existe apenas um operador ligado a um grupo que detém oligopólio. 

Desafios
Por último, mas não menos importante, a elaboração de marcos específicos para os atores sem fins lucrativos, que dêem conta de seus vínculos com as comunidades que integram e reconheçam seu capital social é algo central e uma demanda ainda sem resposta. 

No meu entendimento, quase todas as questões não aplicadas não derivam de erros no texto da lei – que é algo a ser melhorado, como todas as leis –, mas desta aplicação fracionada, resultado de decisões políticas e da intervenção de outros atores, como demonstrei acima.

Outros desafios ficaram de fora da lei, como a questão da convergência digital e os modelos de sustentabilidade. No programa de mestrado em Indústrias Culturais na Universidade de Quilmes falamos deste tema com a seguinte questão: quem paga a conta? A partir disso, algo para ser avaliado no longo prazo – e aberto ao debate – é se este é um tema que deve ser resolvido pela lei. Parece-me que é melhor adotarmos um pacote de medidas que integrem uma política pública de fato, entre as quais deveriam estar a regulação da publicidade oficial, planos de financiamento por editais como no cinema e outros. A curto prazo, essa pergunta hoje tem a seguinte resposta: a conta é paga pelo Estado (por decisão do governo), com publicidade oficial destinada de forma desigual e fundos de fomento do ministério do Planejamento. O problema é que isso não gera uma indústria sustentável e associa uma fonte de financiamento central à vontade do governo. 

Várias perguntas sobre este assunto ainda são difíceis de responder. É complexo imaginar quem estaria interessado em comprar os meios dos quais os conglomerados precisam se desfazer: rádios AM e FM, canais de TV aberta em Buenos Aires. Outra questão é saber o que acontecerá no dia seguinte à venda (que já não é o 8 de dezembro, mas algum em 2013). Esta é a pergunta central para a aplicação efetiva da LSCA, para o funcionamento do sistema de comunicação em um novo paradigma regulatório e para a sustentabilidade do mesmo, num cenário em constante mudança. 

A Argentina tem hoje três políticas para indústrias culturais distintas: o cinema, o TDT (Televisão Digital Terrestre) e a Ley de Medios. Em paralelo atuam três agentes estatais diferentes: INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais), Ministério do Planejamento e AFSCA. Estes agentes trabalham de maneira isolada com temas que deveriam ser pensados e dirigidos de modo integral, tanto junto ao setor privado como àquele sem fins lucrativos. Isso seria uma política de Estado, enfim.

Santiago Marino é argentino e coordenador acadêmico do mestrado em Indústrias Culturais da Universidade Nacional de Quilmes.



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